Sobre mensalão e prisões

Carlos Eduardo Lula

LulaNa semana que se passou, tivemos o encaminhamento dos capítulos finais do mensalão, como se popularizou a chamada Ação Penal 470 em trâmite no Supremo Tribunal Federal. Como uma novela cujo final surpreende a todos, o Brasil assistiu incrédulo à prisão dos primeiros condenados. E, por mais contraditório que isso possa parecer, tal episódio é um dos mais simbólicos e digno de palmas ao governo do Partido dos Trabalhadores.

Mas logo eu, tão crítico aos partidos e governos, a elogiar a agremiação que teve seus principais membros presos? Calma, leitor. Sei que não é simples, mas eu posso explicar.

Um dos maiores símbolos da inefetividade do texto constitucional brasileiro, são suas cadeias. Lá, em regra, encontramos pretos, pobres e prostitutas. Os ricos, os que dilapidam o patrimônio público, os que fazem fortunas à margem da lei, esses nunca foram atingidos pelo nosso sistema penal. As prisões, portanto, são a prova viva de que o Brasil reluta em cumprir o dever de igualdade. E, de algum modo, demonstram a dificuldade do texto constitucional se impor à realidade.

Como vivo a dizer, as idéias de Constituição e de Direitos Fundamentais surgem na segunda metade do século XVIII, como limites à atuação do poder estatal. O Estado precisava abster-se, só sendo garantido, ao lado da democracia, se tivesse como pressuposto, garantia e instrumento os direitos fundamentais. Havia uma vinculação indissociável entre Constituição e Estado de Direito, como um a depender do outro. Até hoje, pode-se dizer que tal premissa não se modificou.

Desta feita, os direitos fundamentais estarão localizados na Constituição e não em outro lugar, incorporados na ordem jurídico-positiva dos direitos “inalienáveis” do indivíduo e deixando de ser retórica política ou utopias vãs, vez que estarão agora protegidos por meio de dispositivos normativos. É essa carga de direitos fundamentais que o Brasil resiste em cumprir.

É que é ilusório crer que a simples positivação jurídico- constitucional dos direitos os torne, só por si, realidade, sendo assegurados na vida em comunidade com grande intensidade.

Os direitos fundamentais na Constituição Republicana de 1988 estão centrados, deslocando-se para o âmago do texto constitucional. Pela primeira vez em uma Constituição Brasileira o assunto foi tratado com tamanha e merecida relevância. Como a dizer: nós estamos aqui, um dia faremos parte da realidade.

Apesar de todas as críticas feitas ao Congresso Constituinte, é inegável a repercussão popular na tentativa de formatar o Documento de 1988, de nele tentar se ver refletido. Os direitos fundamentais foram uma das matérias que mais refletiam estes anseios da população. Tentou-se, com o texto de 1988, dar ordenação jurídica à política.

O que trazem as Revoluções Francesa e Americana para o Direito é a hipótese segundo a qual as tradições jurídico e política tendem a se confundir. Ao se falar de “constituição” se irá pensar num texto jurídico que fixa a constituição política do Estado. A ideia de constituição surge como uma reação à diferenciação entre a política e o direito e uma necessidade de religação entre eles.

A partir de então há a possibilidade de relacionamento entre a política e o direito. Apesar de serem eles subsistemas fechados, isso não implica na impossibilidade de eles se comunicarem, de se relacionarem. A Constituição fecha o sistema jurídico ao discipliná-lo como um âmbito no qual ela reaparece. E na Teoria Política utiliza conceitos como povo, eleitor, partidos políticos e Estado, remetendo-os ao direito. O Estado torna-se uma organização e uma pessoa jurídica.

A invenção da Constituição vai possibilitar exatamente o acoplamento estrutural entre o direito e a política, mas ocultará, ao mesmo tempo, a dependência mútua das duas ordens. Ou seja, ela constitui e torna invisível o acoplamento estrutural entre estes dois sistemas, tornando possível a autonomia operacional do direito, que não mais necessita de apoios externos, como os postulados pelo Direito Natural

Adotar, pois, um conceito moderno de constituição, é entendê-la como sendo uma limitação jurídica ao governo, cumprindo-lhe produzir a diferenciação funcional entre os sistemas político e jurídico.

O que tenho buscado alertar há algum tempo é que a inefetividade da Constituição não é apenas um problema de capacidade de realização das normas constitucionais, mas, fundamentalmente, a problemática de se garantir tanto o fechamento operacional da política quanto o fechamento operacional do direito. Os sistemas têm de se orientar autonomamente, de acordo com seu próprio código, não podem reconhecer como suas comunicações advindas do ambiente. O Direito não pode, para funcionar, depender de injunções políticas.

E o que vimos na prisão dos envolvidos do mensalão? Um ex-ministro e um ex-presidente do partido que governa o país há 10 anos são presos depois de julgados pelo Supremo Tribunal.

E não há convulsão social, tanques nas ruas, banhos de sangue ou brigas generalizadas. Sequer se discute a possibilidade de não se cumprir a decisão judicial, apesar de toda incredulidade com o Judiciário. Não se fala em rompimento com a ordem jurídico-constitucional nem em fechamento do Supremo Tribunal Federal.

Há, obviamente, pessoas revoltadas e outras tanto comemorando as prisões, como é direito de qualquer um numa democracia. Mas só governos maduros em democracias consistentes asseguram as condições para que as prisões de tais personalidades ocorram tal como a vimos na semana que se passou, sem qualquer intercorrência. E isso bastaria para parabenizar o governo do Partido dos Trabalhadores.

Carlos Eduardo Lula é Consultor Geral Legislativo da Assembleia do Maranhão, Advogado, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MA e Professor Universitário. Escreve às terças para O Imparcial e Blog do Clodoaldo Corrêa.

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Suprema Infringência

Por Carlos Lula*

LulaLeio no dicionário. Infringentes. Adjetivo. Que pode infringir; que desobedece, desrespeita ou infringe. Que modifica. Nunca antes na história deste país falamos tanto nos tais infringentes. Embargos Infringentes. Um recurso. Vindo de Portugal. Adotado no Brasil. Cabem ou não cabem?

É apenas mais uma parte do enredo da polêmica Ação Penal 470, conhecida popularmente como “mensalão”. Na última quinta-feira, a sessão do Supremo Tribunal Federal foi encerrada diante de um empate: cinco ministros a favor do julgamento do recurso e outros cinco, contra. A questão central: seriam cabíveis Embargos Infringentes, isto é, seria possível tentar uma rediscussão da decisão primeira do STF que condenou os réus na famosíssima ação?

Luis Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski entenderam que os Infringentes são cabíveis. Já os ministros Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio entenderam pelo não cabimento do recurso. Celso de Mello ainda solicitou ao Ministro Joaquim Barbosa para votar, mas este encerrou a sessão.

Assim, caberá ao ministro Celso de Mello, decano da Corte, definir, na quarta-feira (18/9), se o tribunal admitirá o julgamento de Embargos Infringentes na Ação Penal 470.

Explico. Os Infringentes estão previstos apenas no Regimento Interno do STF. Mas, antes da Constituição de 1988, que deu competência para a União legislar sobre direito processual, a Constituição de 1967/69 dava ao Supremo tal poder, de modo que seu regimento interno era uma Lei Ordinária, e não um ato infralegal, como é hoje.

Assim, após 1988 o entendimento geral é que as normas do Regimento Interno do Supremo que dizem respeito sobre questões eminentemente regimentais foram recepcionadas como normas de regimento interno, ao passo que o conjunto de normas que dispõem sobre direito processual foi recepcionado pela Constituição de 1988 como se fosse Lei Federal Ordinária.

Existem inúmeras decisões do Supremo, inclusive do Presidente Joaquim Barbosa, reconhecendo tal situação. E qual a polêmica dos Embargos Infringentes? A existência da Lei nº 8.038/90, que instituiu normas procedimentais para os processos perante o STJ e o STF. Os cinco ministros, que inadmitiram o recurso, entenderam que estariam revogadas todas as disposições contidas no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que dizem respeito às normas processuais dos feitos de sua competência.

Mas, se formos fazer um levantamento das decisões do próprio Supremo em casos outros, veremos que a tese não se sustenta. E por que tamanha polêmica? Por se tratar do processo do mensalão e porque a sociedade olha o Judiciário como corresponsável pela impunidade na sociedade brasileira.

Os Embargos Infringentes são um bom recurso? Não. Mas se existem e são admissíveis, não é possível negar esse direito aos réus do processo. Vale sempre lembrar que o constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX. Isso está a significar Estado de direito, poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O rei não mais se submete à sua vontade, mas à força da Lei. Nem mesmo a multidão pode modificar tal garantia. Aliás, as garantias constitucionais existem exatamente contra as multidões.

O que quero dizer é que um Tribunal não pode decidir pensando nas manchetes dos jornais do dia seguinte ou reagindo às do dia anterior. Não quero, com isso, afirmar que ele não deva satisfação ao povo. Todo poder político, tal como o judicial, em um ambiente democrático, é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade. Muitas vezes, contudo, a decisão correta não é a mais popular. E é com base na Lei e na Constituição que as decisões judiciais devem ser pautadas.

Todo julgador precisar saber separar a vontade política da interpretação jurídica. E a venda da deusa Themis não é um indicativo de que o Judiciário deve fechar os olhos para a sociedade, mas que o magistrado não pode julgar de acordo com o nome dos réus. Que o Ministro Celso de Mello possa votar sem sofrer intimidação de qualquer parte na próxima semana.

Carlos Eduardo Lula é Consultor Geral Legislativo da Assembleia do Maranhão, Advogado, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MA e Professor Universitário.

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Nota: A partir de hoje o Blog publicará todas as terças-feiras o artigo semanal do advogado Carlos Eduardo Lula, publicado conjuntamente em O Imparcial.