A maior tragédia estatística do Brasil

Por Flávio Dino

Pobreza no Maranhão não é invensão de institutos. Pode ser vista por quem quiser.

Pobreza no Maranhão não é invensão de institutos. Pode ser vista por quem quiser.

O suíço Jean Piaget, há quase um século, mudou a forma como as escolas educam as crianças quando propôs algumas teorias sobre o ensino. Uma de suas teses é de que o incômodo é o ponto de partida para o aprendizado. O exemplo clássico é do bebê que, diante de dor no estômago, chora. A mãe o amamenta e ele passa a associar que, diante da fome, pode pedir comida. Aprende a superar a dor e alcançar o conforto da saciedade.

Ignorar o incômodo e deixar de “denunciá-lo” por meio do choro não resolveria o problema do bebê. Em um adulto, o silêncio seria um erro ainda mais grave. Os psicólogos chamariam tal atitude de negação – tipificada pela psiquiatra Anna Freud como o mecanismo de defesa psíquica mais ineficaz, por tratar-se de simplesmente ignorar uma realidade.

Corresponderia a alguém que, diante da queda de um objeto, em vez de agarrá-lo para evitar que caísse, passasse a questionar a Lei da Gravidade. Portanto, é chocante ter lido no domingo passado o senador José Sarney, figura tão experiente e com carreira política tão longeva, gastar laudas para negar uma realidade escrita na pele de quem aqui vive.

Consideremos somente o estranho argumento de falta de validade do IDH, principal instrumento da medição feita pela ONU do grau de desenvolvimento dos povos, chancelado no Brasil por um órgão federal da excelência do IPEA. Pois faltaria espaço nesta página para elencar o total de rankings em que o Maranhão ocupa a última ou penúltima posição: pior índice de extrema pobreza do país, menor índice de policiais por habitante, o menor índice de médicos por habitante, menor abastecimento de água, o penúltimo estado do Brasil em expectativa de vida, e tantas estatísticas que enchem nossa alma de tristeza.

Infelizmente, esta longa lista não é obra de uma antipatia dos algarismos pelo nosso estado, tampouco de uma fantástica conspiração de todos os institutos de pesquisa do país e do mundo contra nosso querido Maranhão. É apenas a tradução, em números, da absurda realidade que os maranhenses enfrentam todos os dias com tanta coragem e altivez.

Para destacar coisas positivas de nosso estado, não é necessário tentar revogar o IDH ou a lei da gravidade. Basta citar a longa lista de indicadores que traduzem nosso imenso potencial. Temos o segundo maior litoral do Brasil, localizado próximo aos Estados Unidos, à Europa e ao canal do Panamá, que dá acesso ao mercado asiático; gás e ouro; agricultura, pecuária e pesca, com bom regime de chuvas; indústrias; um extenso território cortado por ferrovias, rodovias e um dos maiores complexos portuários do Brasil; rios e lagos; imenso potencial para o ecoturismo e para o turismo cultural.

Mas mesmo belas estatísticas despertam tristeza, já que contrastam justamente com a brutal negação de direitos que marca a vida da maior parte dos maranhenses. E como tanta riqueza é capaz de gerar tanta pobreza?  Como o estado que é o 16º mais rico do Brasil tem a penúltima posição quando se fala em distribuição de riqueza? Como um estado que produz mais de R$ 40 bilhões de reais em riquezas, todos os anos, tem em seu território uma em cada cinco pessoas vivendo abaixo da linha de extrema pobreza?

Talvez porque nem a riqueza – nem o martelo e o prego que a produzem – consigam chegar às mãos dos que trabalham. Denunciar essa realidade não é desamor pelo Maranhão. Esse argumento, de inspiração fascista e semelhante aos da ditadura militar, tenta negar o direito de a oposição se manifestar livremente. Não tenho ódio pessoal contra ninguém, mas sou imbuído de uma profunda indignação com tantas injustiças, e defenderei eternamente o nosso direito de lutar por um Maranhão que não veja a sua riqueza ser subtraída em tenebrosas transações, como canta Chico Buarque.

Esse tal de RCED

Por Carlos Eduardo Lula*

LulaA vida política do Maranhão foi decidida nos últimos anos com inegável interferência da Justiça Eleitoral. Tivemos um Governador apeado do poder no ano de 2009, a seguinte eleição governamental também contestada sua legitimidade perante o Judiciário, inclusive com parecer do Ministério Público por sua procedência.

Nos dois casos, ações com nomes esquisitos, que tomaram a boca da população: RCED, as iniciais para o pomposo nome completo da ação: “recurso contra a expedição de diploma”. Este instituto, com nome e procedimento de recurso, mas que na verdade é uma ação, está previsto no art. 262 do Código Eleitoral e vinha sendo utilizado desde a década de sessenta do século passado, sem qualquer tipo de contestação.

Na última semana, contudo, o mundo jurídico foi tomado de espanto no julgamento do RCED 884 pelo Tribunal Superior Eleitoral. Nele, buscava-se a cassação do mandato do Deputado Francisco Assis Carvalho (PT-PI). Ninguém discutia a constitucionalidade da ação até o Relator, Ministro Dias Toffoli, levantar essa preliminar. Por maioria de votos (4×3), o TSE entendeu que o inciso IV do art. 262 do Código Eleitoral não teria sido recepcionado pela Constituição e que tais ações deveriam ser aproveitadas como Ações de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME), com outro procedimento e em outra instância.

Mantido tal entendimento, o contexto político local se alteraria. De um RCED prestes a ser julgado, teríamos o seu encaminhamento ao Tribunal Regional Eleitoral, para que então proferisse o julgamento. Críticas e teorias conspiratórias surgiram de todos os lados, a demonstrar, de forma clara, a delicada função do Poder Judiciário ao cassar eleitos pela população.

Em tais situações, tenho sempre defendido o papel da Justiça Eleitoral. Tanto mais democrático o processo, quanto maiores e mais eficazes os seus sistemas de controle. Mesmo os atos praticados pelos órgãos de representação popular, ainda que com apoio da própria população, podem ser objeto de crítica e controle, porquanto a predominância da maioria só deve ser aceita dentro de um quadro de respeito à legalidade.

E é esse, afinal, um dos objetivos da jurisdição: a sobrevivência e a proteção das minorias governamentais, de modo que o Judiciário passa a atuar enquanto um órgão de composição de conflitos políticos, numa verdadeira contenção ao princípio da maioria, já que nenhuma decisão pode estar imune a controles democráticos.

Ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República. E nesse sentido, a democracia também garante a segurança de expectativas das pessoas: todas as Instituições hão de respeitar o ordenamento jurídico e as posições jurídicas de seus cidadãos. Assim, é possível afirmar que é também papel da Justiça Eleitoral ser garantidora do regime democrático, ao mesmo tempo em que é garantida por ele.

O que quero afirmar é que a possibilidade de mandatos serem cassados faz parte das regras do jogo. Como dito, num regime democrático, a vontade política da maioria governante de cada momento não pode prevalecer em detrimento da Lei. Ao revés, ela submete-se à legislação.

Mas não podemos ter situações idênticas tratadas de forma distinta pelo Poder Judiciário. A mudança abrupta de um entendimento desmerece o Judiciário, a classe política e traz enorme desconfiança por parte da sociedade. Numa noite em que um dos membros deixava a Corte e sem ouvir sequer o Ministério Público, o TSE não poderia ter jogado fora um entendimento que vem desde 1965.

A segurança jurídica é postulado que se deduz do texto constitucional (art. 5º, XXXVI, XL e art. 150, III, CF/88), de modo que deve ser possível adquirir certeza e previsibilidade das relações judiciais. O cidadão não pode dirigir-se ao Poder Judiciário com a mesma expectativa que vai a uma casa lotérica. Numa premissa: proteção da confiança.
Carlos Eduardo Lula é Consultor Geral Legislativo da Assembleia do Maranhão, Advogado, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MA e Professor Universitário.

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Suprema Infringência

Por Carlos Lula*

LulaLeio no dicionário. Infringentes. Adjetivo. Que pode infringir; que desobedece, desrespeita ou infringe. Que modifica. Nunca antes na história deste país falamos tanto nos tais infringentes. Embargos Infringentes. Um recurso. Vindo de Portugal. Adotado no Brasil. Cabem ou não cabem?

É apenas mais uma parte do enredo da polêmica Ação Penal 470, conhecida popularmente como “mensalão”. Na última quinta-feira, a sessão do Supremo Tribunal Federal foi encerrada diante de um empate: cinco ministros a favor do julgamento do recurso e outros cinco, contra. A questão central: seriam cabíveis Embargos Infringentes, isto é, seria possível tentar uma rediscussão da decisão primeira do STF que condenou os réus na famosíssima ação?

Luis Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski entenderam que os Infringentes são cabíveis. Já os ministros Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio entenderam pelo não cabimento do recurso. Celso de Mello ainda solicitou ao Ministro Joaquim Barbosa para votar, mas este encerrou a sessão.

Assim, caberá ao ministro Celso de Mello, decano da Corte, definir, na quarta-feira (18/9), se o tribunal admitirá o julgamento de Embargos Infringentes na Ação Penal 470.

Explico. Os Infringentes estão previstos apenas no Regimento Interno do STF. Mas, antes da Constituição de 1988, que deu competência para a União legislar sobre direito processual, a Constituição de 1967/69 dava ao Supremo tal poder, de modo que seu regimento interno era uma Lei Ordinária, e não um ato infralegal, como é hoje.

Assim, após 1988 o entendimento geral é que as normas do Regimento Interno do Supremo que dizem respeito sobre questões eminentemente regimentais foram recepcionadas como normas de regimento interno, ao passo que o conjunto de normas que dispõem sobre direito processual foi recepcionado pela Constituição de 1988 como se fosse Lei Federal Ordinária.

Existem inúmeras decisões do Supremo, inclusive do Presidente Joaquim Barbosa, reconhecendo tal situação. E qual a polêmica dos Embargos Infringentes? A existência da Lei nº 8.038/90, que instituiu normas procedimentais para os processos perante o STJ e o STF. Os cinco ministros, que inadmitiram o recurso, entenderam que estariam revogadas todas as disposições contidas no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que dizem respeito às normas processuais dos feitos de sua competência.

Mas, se formos fazer um levantamento das decisões do próprio Supremo em casos outros, veremos que a tese não se sustenta. E por que tamanha polêmica? Por se tratar do processo do mensalão e porque a sociedade olha o Judiciário como corresponsável pela impunidade na sociedade brasileira.

Os Embargos Infringentes são um bom recurso? Não. Mas se existem e são admissíveis, não é possível negar esse direito aos réus do processo. Vale sempre lembrar que o constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX. Isso está a significar Estado de direito, poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O rei não mais se submete à sua vontade, mas à força da Lei. Nem mesmo a multidão pode modificar tal garantia. Aliás, as garantias constitucionais existem exatamente contra as multidões.

O que quero dizer é que um Tribunal não pode decidir pensando nas manchetes dos jornais do dia seguinte ou reagindo às do dia anterior. Não quero, com isso, afirmar que ele não deva satisfação ao povo. Todo poder político, tal como o judicial, em um ambiente democrático, é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade. Muitas vezes, contudo, a decisão correta não é a mais popular. E é com base na Lei e na Constituição que as decisões judiciais devem ser pautadas.

Todo julgador precisar saber separar a vontade política da interpretação jurídica. E a venda da deusa Themis não é um indicativo de que o Judiciário deve fechar os olhos para a sociedade, mas que o magistrado não pode julgar de acordo com o nome dos réus. Que o Ministro Celso de Mello possa votar sem sofrer intimidação de qualquer parte na próxima semana.

Carlos Eduardo Lula é Consultor Geral Legislativo da Assembleia do Maranhão, Advogado, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MA e Professor Universitário.

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Nota: A partir de hoje o Blog publicará todas as terças-feiras o artigo semanal do advogado Carlos Eduardo Lula, publicado conjuntamente em O Imparcial.