Carlos Eduardo Lula
Aquilo que chamam “morrer” não é senão acabar de viver e o que chamam “nascer” é começar a morrer. E aquilo que chamam “viver”é morrer vivendo. Não esperamos pela morte: vivemos com ela perpetuamente. Jean Baudrillard
“Não chegamos a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos existência. No resto vamos vagalumeando, acesos apenas por breves intermitências. Uma vida inteira pode ser virada do avesso num só dia por uma dessas intermitências. Para mim, Mwanito, aquele foi o dia”.
Lia Mia Couto, mas podia ser comigo. Tal como nos outros dias de minha vida, tudo me era indiferente. A cada discussão, a cada debate, a cada festa ou comemoração, o máximo em que conseguia pensar era sobre o que comeria mais tarde. A vida, para mim, era um tédio.
Mas aquele foi meu dia. Começou de manhã logo cedo, quando saí de casa para enfrentar o calor escaldante daqueles dias do Rio de Janeiro. Por conta de uma tal lei da copa, o semestre letivo havia se iniciado com alguma antecedência. Isso era sinal de que finalmente naquele ano teríamos aulas antes do carnaval.
Bem, nem tanto assim. Nas primeiras duas semanas, não havíamos tido aulas ou porque os professores ainda se encontravam de férias ou porque não davam mesmo a menor satisfação. – O professor Jorge ainda está em Miami, era a resposta que tínhamos. Isso porque fazia meu curso numa instituição privada, graças a um dos tantos programas de bolsa do governo.
Nunca entendi muito bem como aquilo funcionava, mas lá estava, numa grande universidade particular brasileira, sem nada pagar. Mas aquele nunca foi o meu lugar. Nunca tive vontade mesmo de estar ali. Nunca tive. Mas minha mãe sempre insistiu: – vá, meu filho, estude e tenha um futuro melhor para a nossa família. E não respondia, mas sempre pensava: – que porcaria de família se nem sei quem é meu pai?
Não vivia, sobrevivia. Percorria as horas numa letargia sem fim. Todos os dias pareciam anos a se passar e aquele janeiro não tinha nunca fim. Havia sido despedido do emprego no Bob’s. O gerente de lá vivia dizendo que tínhamos de ter alegria ao atender os clientes, ao entregar o produto, ao limpar as mesas. Nunca entendi tamanha satisfação ao embalar um sanduíche plastificado ou ter de limpar a nojeira das dondocas que não tinham o trabalho sequer de levar seus pratos até a lixeira. Isso quando as dondocas não eram minhas colegas de turma. Tinha vergonha.
No dia que o gerente reclamou de mim e de minha apatia, não tive dúvidas. Postei a foto do meu salário no facebook e no instagram. Menos que o mínimo. A fama momentânea me gerou uma euforia que eu nunca havia experimentado. Fui parar na capa do Extra, um desses tabloides sensacionalistas que vendem desesperadamente. Fui demitido, obviamente, mas durante alguns dias saí da escuridão. Tornei-me famoso. Nunca tinha vivido aquela experiência. Gostei.
Mas o passo que daí sobreveio foi pior. Aterrorizante. De trend topic no Twitter, voltei à minha insignificância. E agora sem emprego e sem nenhuma chance de ter meu currículo aceito em outra empresa. E então mamãe morreu. Ontem. Talvez anteontem, não sei bem. Cheguei à minha casa de mais um dia sem aulas com a notícia: – sua mãe faleceu, assalto no ônibus. E a família que sempre achei que não tivesse, acabava de perder.
No outro dia, eu mesmo tratei de fazer a cova para enterrar a minha mãe. Não quis coveiro. Mas “enterrar” é apenas modo de dizer. Afinal, nunca haverá terra suficiente para enterrar uma mãe. E eu só entendia aquilo naquele exato momento em que, por mais que cobrisse o buraco de areia, o vento soprava em fúria, retirando-a da cavidade. Foi preciso um coveiro profissional terminar o serviço de fechar a sepultura.
Saí de lá sem rumo, mas aquele seria meu dia. Tinha uma necessidade imensa dentro de mim de tudo destruir à minha volta. Detestava aquela vida de ser um desconhecido no meio da multidão. Queria fama, dinheiro, riqueza, poder. Queria comprar um tênis de marca, ter um iphone branco da última geração, passear por aí com meu carro. Ter o mundo a meus pés.
Chegando à praia, vi uma multidão de preto avançando contra a polícia. Não sabia direito do que se tratava, mas a quantidade de jornalistas que cobriam o evento me permitiu uma ideia. Tinha de chamar a atenção e voltar a ser famoso. Entre pedradas e empurra empurra, nada de novidade. Quando vi então o Fusca andando lentamente ao lado do protesto.
Não pensei duas vezes. Peguei o colchão de um dos manifestantes, pus fogo nele e joguei embaixo do automóvel. Não vi se a família conseguiu sair do carro, mas isso pouco importa. De um jornal de subcelebridades, agora viraria destaque no Jornal Nacional. Certeza. Tinha ateado fogo a um carro. Era questão de tempo.
Virei as costas e saí tranquilamente, sem ninguém a me incomodar. Encontrei Marie, colega de curso. Perguntei-lhe se queria ir ao cinema. Ela sorriu e disse que sim. Ambos de preto, perguntou-me se estava de luto ou se participava também do protesto, às risadas.
Disse-lhe que mamãe tinha morrido. Como quisesse saber há quanto tempo, respondi:
– Morreu ontem.
Carlos Eduardo Lula é Consultor Geral Legislativo da Assembleia do Maranhão, Advogado, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MA e Professor Universitário. e-mail: [email protected] . Escreve às terças para O Imparcial e Blog do Clodoaldo Corrêa
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