Que o TSE deixe de ser legislador

Carlos Eduardo Lula

 06/05/2011. Crédito: Neidson Moreira/OIMP/D.A Press. Brasil. São Luís - MA. Carlos Eduardo Lula, advogado.Ao lado da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral é uma das justiças especializadas com previsão constitucional. Ela foi fruto da Revolução de Trinta, que teve como um dos seus objetivos a moralização do procedimento eleitoral (na Primeira República era normal candidatos serem eleitos e terem sua diplomação negada pelo Poder Legislativo). Sua criação ocorreu em 1932, no governo de Getúlio Vargas, sob inspiração do Tribunal Eleitoral tcheco, de 1920, idealizado por Hans Kelsen, que unificou a legislação eleitoral e concedeu autonomia para que o Poder Judiciário realizasse as eleições.

Assim, peculiar no tocante às atribuições desta justiça, é que, em que pese estar afeta tão somente às matérias eleitorais, não se limita sua atividade apenas à função jurisdicional, mas exerce também atividade tipicamente administrativa, julgando alistamento, transferências, cancelamentos, revisão de eleitorado e prestação de contas dos partidos políticos, por exemplo, além de exercer o poder de polícia no controle da propaganda política. Na verdade, prepara, realiza e apura as eleições. Tem ainda poder de expedir instruções para regulamentar o Código Eleitoral e responder a consultas formuladas afetas à matéria eleitoral.

E é este o ponto que queremos colocar em debate. O art. 23, IX, do Código Eleitoral previu expressamente o poder normativo da Justiça Eleitoral. A fim de disciplinar as eleições, pode o TSE expedir as instruções que julgar convenientes à execução do Código Eleitoral. Obviamente, tal poder normativo só pode ser exercido segundo a lei, jamais contra a lei, uma vez que os juízes não podem substituir o legislador, encontrando-se subordinados à lei e à Constituição.

Todavia, vez por outra vemos a comprovação de um velho adágio, a afirmar que as Resoluções do TSE fazem tudo, menos chover. Durante a semana que se passou ficamos sabendo que simplesmente, por meio de uma Resolução, o Tribunal diminuiu drasticamente os poderes do Ministério Público.

Até a eleição de 2012, previa-se o seguinte nas resoluções do TSE: “o inquérito policial eleitoral somente será instaurado mediante requisição do Ministério Público ou da Justiça Eleitoral”. Para o pleito de 2014, os ministros mudaram o texto: “O inquérito policial eleitoral somente será instaurado mediante determinação da Justiça Eleitoral”. Ou seja, o Ministério Público foi excluído, de modo que agora a abertura de um simples Inquérito Policial passa a ser subordinado ao Judiciário.

Simplesmente um absurdo, uma vez que o poder do Ministério Público de requisitar inquéritos policiais está expresso no art. 129, VIII, da Constituição Federal. Uma resolução do TSE não poderia, portanto, contrariar o texto constitucional.

A Justiça Eleitoral, portanto, vive essa ambivalência, digna de O Médico e o Monstro. Ora ela é aplaudida pela sociedade, e assume o papel de Henry Jekyll, notadamente quando exerce seu papel regulador dos processos eleitorais e tenta desenvolver fórmulas para revolucionar a natureza humana, isolando os componentes criminosos da personalidade, personificando o Dr. Henry Jekyll, ser pacato e com reconhecimento social. Foram mais de setecentos mandatos cassados desde o ano 2000, verdadeira revolução copernicana no sistema político pátrio.

Mas como que na obra de Robert Louis Stevenson, transfigurara-se em um ser monstruoso, deixando um rastro de pavor, medo e repulsa por onde passa, personificando o papel de Mr. Hyde, ao simplesmente tentar fazer as vezes do Poder Legislativo.

O poder normativo dado à Justiça Eleitoral pelo Código Eleitoral de 1965 tinha uma razão histórica, qual seja, a verdadeira compulsão do legislador de então de normatizar acerca do direito eleitoral. Passadas mais de quatro décadas da vigência do Código Eleitoral, e se tendo há mais de uma década uma única lei a reger as eleições (lei nº. 9.504/97), a compulsão normativa vem de onde menos se espera.

A inovação cada vez maior em suas resoluções, que só deveriam regulamentar a previsão legal, jamais alterá-la, em nada contribui para a segurança e estabilidade do processo eleitoral. Há, por assim dizer, uma vontade manifesta do TSE de substituir o legislador onde ele não consegue avançar.

Ao exacerbar sua função normativa, a Justiça Eleitoral cria uma tensão desnecessária com o Poder Legislativo, tentando impor situações que o legislador nunca conseguiu prever. Mas ao fazê-lo, desrespeita a Constituição, o que não é permitido a ninguém num sistema democrático.

Assim, é certo que as disposições constitucionais não se encontram dispersas, mas num sistema aberto de regras e princípios. Todas as regras e princípios dispostos na Lei Fundamental dialogam entre si. E para tal diálogo, deve estar atento o Direito Eleitoral brasileiro. Mas sem nunca desrespeitar ou sobrepujar-se às previsões — boas ou más — colocadas pelo legislador, quando a elas não se pode inquinar a pecha de inconstitucionalidade.

Nesse caso, infelizmente, a Justiça Eleitoral tem atuado como Mr. Hyde, na obra de Stevenson, deixando um rastro de sangue e dor por onde passa, ao desrespeitar o texto constitucional. O melhor seria revogar a previsão do art. 23, IX, do Código Eleitoral, e deixar que o processo eleitoral seja regulamentado apenas por nossa legislação, o que já não é pouca coisa.

 Carlos Eduardo Lula é Consultor Geral Legislativo da Assembleia do Maranhão, Advogado, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MA e Professor Universitário. e-mail: [email protected] . Escreve às terças para O Imparcial e Blog do Clodoaldo Corrêa

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