A vida como ela é

06/05/2011. Crédito: Neidson Moreira/OIMP/D.A Press. Brasil. São Luís - MA. Carlos Eduardo Lula, advogado.

Pont des Arts

Raquel lia aterrorizada a notícia sobre a Pont des Arts. Localizada no coração de Paris, as grades da ponte passaram, a partir da década de 80, a abrigar incontáveis cadeados de casais apaixonados. O procedimento era prender o cadeado com o nome do casal e, ato contínuo, jogar a chave nas águas do rio Sena como prova do amor.
Naquele dia, contudo, a ponte foi interditada. O alambrado da grade havia cedido com o peso dos cadeados. Era seu sonho, após o casamento, com seu grande amor, selar a lua de mel colocando um cadeado na famosa ponte. Esperava que a ponte em breve estivesse arrumada.

Júlio
Todo mundo achava que tinham nascido um para o outro. E, de fato, havia entre Júlio e Raquel uma série de afinidades profundas. Gostavam dos mesmos filmes, da mesma comida, não gostavam de ler. Ana, a melhor amiga e com quem Raquel dividia o apartamento, chegava a duvidar:
– Vocês nunca brigaram?
– Nunca.
– Como vocês, nunca vi! Eu só posso gostar demais de brigar. Não vivo sem uma boa briga. Isso anima a relação.
– Deus me livre, Ana. Joga essa conversa pra lá. Logo eu me caso e terei uma vida de paz.

A obsessão
Mas a despeito de todas as afinidades, a paz de Raquel era mais uma conquista sua que uma consequência verdadeira da relação de ambos. Aproveitando-se do temperamento manso de Júlio, tinha absoluto controle sobre cada atitude sua, sobre cada passo seu. Onde ia, com quem falava, o horário que saía do trabalho. O perfil no facebook era do casal, a senha do celular ela possuía. Júlio, para Raquel, não tinha um momento sozinho, e deveria a ela contar tudo, dizer tudo.

O triste amor
A poucos dias do casamento, Ana diz à amiga, secamente:
– Não acredito no teu amor por Júlio.
– Que história é essa? Para com isso, amiga. Eu vou me casar com ele em dez dias.
– Não é amor. Raquel, você não sabe o que é amor.
– E por acaso, você sabe? Você que vive um relacionamento a cada quinze dias, sabe? Você sabe o que é amor?
– Raquel, o amor assusta mais do que todos os fantasmas que habitam o coração humano. O que interessa a você é o casamento, você está apaixonada pela ideia de se casar, e não pelo Júlio. E se o Júlio fosse casado? Você gostaria dele?
– Idiota! Escuta aqui! Primeiro que ele não é casado. E segundo que se ele gostasse de outra, eu o deixaria viver ao lado dela. O que me importa é vê-lo feliz.
– Mentira. Raquel, a quem você quer enganar? Escuta aqui: a nossa frustração em encontrar o “amor verdadeiro” é apenas um clichê que esconde o essencial: o amor não é um produto que se compra para combinar com os móveis da sala. Você não precisa achar que o Julio é o grande amor de sua vida se não sente isso verdadeiramente.
Raquel quis chorar. Mas Ana precipitou-se e a tranquilizou. Mas reafirmou:
– Olha, eu acho que em amor o estado civil pouco importa. O que importa é o homem ou a mulher e o amor que sentimos por eles. Nada mais que isso.
– Tudo bem. Mas sempre é melhor que o homem seja só nosso.

O noivo
No outro dia pela manhã foi com o noivo a uma casa de material de construções comprar o cadeado e gravar logo o nome de ambos. Queria ia a Paris com tudo organizado. Ela percebeu que Júlio estava diferente. O que há contigo, perguntou.
– Não tenho nada, mentiu.
– Vamos, Júlio, diga logo. Eu sei que você está mentindo. Conte logo tudo para mim. Não sou tua noiva para saber tudo, ouvir tudo?
– Escuta, Raquel, eu não aguento mais. Está tudo terminado. E a deixou para sempre, junto com o cadeado, no caixa da loja. A ponte havia deixado a Raquel uma mensagem clara, que ela não havia entendido: se o amor não for leve, desaba e afunda.

 

Carlos Eduardo Lula é Consultor Geral Legislativo da Assembleia do Maranhão, Advogado, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MA e Professor Universitário.

A vida como ela é…

Por Carlos Eduardo Lula

Ana

Diga-se, entre parênteses, que Ana era o que antigamente se chamava de uma “moça direita”, uma “menina de família”, uma “mulher honesta”, como dizia o Código Penal. Na rua onde morava, existiam outras, muito mais levadas. De uma delas, dezessete anos recém completos, dizia-se que fora vista com um homem casado, pai de filhos. Outra que teria avançado sobre o pastor.

Já Ana, beirando os trinta, embora gostasse de se sentir bonita e olhada pelos homens, tinha seus limites, cada vez mais rígidos impostos pela religião. Quase não namorou. Se um pretendente se animava muito, ela já se impunha:

— Tá bom, vamos parar.

— Sim, está ótimo. Qual o problema?

Era categórica:

— Não avance o sinal, ok? Você está enganado comigo. Tchau.

E Ana partia sem qualquer tipo de remorso. Não podia pecar.

Marcelo

Um dia, em saída cada vez mais rara com suas amigas, ia passando quando um rapaz, já meio alcoolizado, fez a exclamação:

— Que linda!

Era Marcelo. Sim, o galanteio foi péssimo. Mas Ana gostou. Olhou, sorriu, mexeu nos cabelos, deu o sinal. Bingo! Marcelo sabia como conquistar uma mulher. Cativou-a, encantou-a, e Ana se apaixonou de vez quando soube que Marcelo frequentava a mesma Igreja que a sua. Por ela, prometeu até largar a bebida e voltar para a religião.

Quinze dias de paixão avassaladora, Ana já fazia planos para o casamento, quando Marcelo, um pouco mais nervoso que de costume, resolve lhe fazer um comunicado em voz solene:

— Sou noivo. Mas logo acrescentou: — Não faz mal, vou acabar tudo e ficaremos juntos.

Ana chorou, entre a apreensão e a alegria.

O amor

Os dois meses que se passaram foram de intensa paixão. Noivado, casamento já agendado, planos para a compra da casa própria. Mas Ana não estava bem.

Seu pensamento flanava, passeava, ia longe. Ia, voltava e contornava. E párava. Fixo na mesma coisa, não se conseguindo mais deixar de lembrar, reviver e querer mais uma vez. Ana sequer ia ao trabalho. Aquilo havia virado uma fantasia recorrente. Real e imaginário já se confundiam.

Por mais que Marcelo tivesse confessado o noivado, o tivesse rompido, ela não confiava. Queria ter absoluto controle sobre cada ação de Marcelo. Onde ia, com quem falava, o horário que saía do trabalho, os grupos que usava no whatsapp. Fez Marcelo mudar o número de telefone, fez Marcelo sair do whatsapp, fez Marcelo deixar a academia e os jogos de futebol. Marcelo deveria a ela contar tudo, dizer tudo.

Marcelo virara sua obsessão. E ao lado dele, sua imaginação era fértil. Nunca havia lhe despido, nunca o tinha visto sequer sem camisa. Os beijos quase não ocorreram, de tão tímidos. Mas os sinais, os enredos pareciam ser tão prazerosos quanto aquele momento imaginário. Ao lado dele, já não conseguia escutar nada, coisa nenhuma, apenas a respiração de seu companheiro, que a envolvia completamente.

Estar naquela situação era tudo que seu coração desejava e sua mente rejeitava. Era como a razão lhe anunciasse solenemente:

— Por favor, não me atice. Já não respondo por mim há um tempo. Não controlo esse impulso vindo de dentro. Que sobe queimando dentro de mim, que me deixa de boca seca e joelhos fracos, desejando. Então, por favor, não brinque com fogo, não me tente, não me atente.

O desfecho

E não mais sabendo o que era real ou imaginário, o desespero lhe tomava a alma. A iminência de ele sair de perto era angustiante. Amarrou-se a ele. Prendeu-o, com corda e tudo, trancado dentro dela. Quem sabe assim não lhe perdia?

Até que um dia, quando Marcelo deixou o celular no sofá, olhou a mensagem que não queria ver. A mensagem dela, da que tinha sido noiva. Ana compreendeu, é claro. Foi até Marcelo, deu-lhe um beijo como nunca antes tinha dado para surpresa e êxtase do noivo.

Saiu do mesmo modo que entrou, sem dizer uma só palavra. Foi até o banheiro e, com a gilete, cortou os dois pulsos. Foi encontrada pelo próprio Marcelo, com o vestido de noiva nos braços completamente ensopado de sangue.

 

Carlos Eduardo Lula é Consultor Geral Legislativo da Assembleia do Maranhão, Advogado, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MA e Professor Universitário. e-mail: [email protected]