Velozes e furiosos

Por Carlos Eduardo Lula

acidenteEra um domingo triste, porque todos os domingos são tristes. Passeava pela cidade quase morta de tão mal cuidada, mas ainda as ruas me sorriam. Na expressão daqueles becos e avenidas, havia inexplicavelmente a doçura daqueles que sabem revelar seu último olhar.

Suja, maltrapilha, doente e mal amada, a cidade parecia viver seus últimos instantes. Mas era domingo, e talvez por conta de sua cor e de seu tom gris melancólico, podia andar pelas ruas com um pouco mais de calma, olhando o que se passava à minha volta. Sim, porque a velocidade da vida moderna é coisa de cretinos, como diria Nelson Rodrigues.

Só aos domingos, nos domingos cinzas de um céu azul quase triste, podia sentir saudade dos bondes que nunca chegavam, mesmo sem jamais tê-los esperado. Aquele momento em que se ficava de pé, a esperar a condução, longe dos smartphones e das tecnologias que não nos permitem desligar um só segundo, sempre foi um convite à reflexão.

Gostar desses domingos translúcidos é coisa de quem não se adequa, não se ajusta. Não se sente parte. Leio no dicionário. Outsider. Forasteiro, leigo, estranho. O que está do lado de fora. O cavalo com a menor possibilidade de ganhar o páreo. Outsider, um ser que não faz falta na festa. O desprestigiado.

O sujeito que não é aceito como membro de um grupo particular. O deslocado. O que não se enquadra. O carinha que se sentava, não falava com ninguém e ia embora sozinho do colégio. Eu sempre admirei esses garotos. Não que seja legal ser diferente. Só que ninguém precisa ser igual.

Mas a sociedade nunca foi tão violenta. Invade. Impõe. Machuca. Destrói. Inclusive os estilos de vida. A sociedade estratifica as pessoas, seu comportamento, seus modelos de consumos, hábitos e rotinas. Fazer escolhas, vivenciar o mundo. Tudo do mesmo jeito. Da mesma forma.

Os homens possuem a necessidade de serem aceitos. Mas a sociedade cotidiana tem levado isso a níveis doentios, inimagináveis. Para fazerem parte de um grupo, a pessoas submetem-se a um processo de padronização sem sentido. Aquela calça amarela acrescida de um óculos três vezes maior que a cara do sujeito saiu do armário, fantasia de carnaval que era, e virou fashion. In.

É nesse momento que a figura do outsider, do zé ninguém, mais me fascina. Parece ser um jeito de levar a vida muito mais interessante. Não, eles não são diferentes. Só não aceitam ser iguais. Não se conformam aos valores dos grupos sociais apenas para fazer parte desses grupos. Transgridem continuamente. A maior parte do tempo, solitariamente. A angústia deve acompanhá-los, mas eles não aceitam aceitar só para serem aceitos.

Enquanto devaneio, me deparo com um acidente. Recordo-me novamente de Nelson Rodrigues, a afirmar que a morte estava se tornando pública. Nelson não viveu o suficiente para entender que, em nossos tempos, os motoqueiros só podem morrer assim, num abalroar com outro veículo, em meio à multidão, atrapalhando o trânsito.

Jovem, voltava, a mil por hora, de uma baladinha. Queria viver a vida intensamente. E ao ver aquele cadáver naquele domingo cinzento, lembrei de meu pai – aliás, eu sempre me lembro de meu pai.

Apenas muito tempo depois de sua morte, consegui compreender duas coisas: primeiro, que a saudade não se traduz pela falta, mas pela presença. Fundamentalmente, não há falta na ausência, senão uma sensação de completo pertencimento. Aquele que não sente saudade, não pode afirmar possuir vida interior.

Em segundo lugar, entendi que só abandonando o medo da morte – como fez meu genitor para minha total incompreensão à época – se pode nascer e renascer. Apenas quando se compreende que a vida não é um castigo, uma desculpa ou um infortúnio, mas um compromisso, inevitavelmente difícil e muitas vezes triste, é que podemos libertar nosso espírito de seu calvário. Afinal de contas, a morte, essa certeza, é o justo contraponto de nossa fé, essa incerta.

Aquele jovem não deve ter tido tempo de pensar sobre isso. Para ele, a morte apareceu repentina, sem permitir uma fuga desesperada, como foge desesperadamente o tempo atual. Apenas mais um na multidão, a atuar de acordo com as regras que a sociedade lhe impõe. Enquanto dirigia a moto, tirava a foto do velocímetro a duzentos por hora para mostrar no facebook. Morreu tendo mais de cem curtidas. Sem tempo para contemplação enquanto o bonde não chega, nossa juventude nunca viveu tão pouco sob o argumento de querer viver tanto.

 

Carlos Eduardo Lula é Consultor Geral Legislativo da Assembleia do Maranhão, Advogado, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MA e Professor Universitário. e-mail: [email protected] . Escreve ás terças para O Imparcial e Blog do Clodoaldo Corrêa