Por Carlos Eduardo Lula
Antes de qualquer coisa, gostaria de esclarecer ao amigo leitor, que, tal como você, sou mais um brasileiro a combater a corrupção, ciente das mazelas que tal conduta traz na iniciativa pública e privada. Feita essa premissa, dispensável em outros tempos, mas necessária na quadra atual, quando parece estarmos prestes a novamente assistir pessoas sendo mortas na fogueira em praça pública, podemos continuar.
Tenho assistido cada vez mais horrorizado a condução da operação “Lava Jato”. Parece-nos que a mesma falta de cuidado na grafia da expressão “lava a jato” houve na interpretação da lei penal pelos órgãos julgadores e acusadores no caso. Não discuto aqui o desbaratamento da quadrilha que tomou de conta da Petrobrás. Comprovados os fatos narrados pela imprensa, todos devem merecer dura condenação.
O que me assusta, contudo, é saber até que ponto a sociedade vai renunciar a conquistas históricas sob o pretexto de “combater o crime”. Sim, porque, até o presente momento, o que se tem assistido, pelo menos do que publicamente se expõe, é uma hermenêutica completamente equivocada, com todo o respeito, dos mecanismos postos à disposição do Estado para incriminar uma pessoa.
Diz o artigo 312 do Código de Processo Penal: “A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”.
Diante de tal dispositivo normativo, o Ministério Público Federal tem entendido que a atual redação do art. 312 do Código de Processo Penal permite a prisão preventiva ante a “possibilidade real de o infrator colaborar com a apuração da infração penal”, o que nos faz voltar aos tempos da Idade Média. Agora, sob a égide da Constituição de 1988, repentinamente se tornou possível alguém permanecer preso até que venha confessar seu delito.
O nobre magistrado, por essa interpretação, deixaria de ser um guardião da segurança individual, um defensor dos direitos fundamentais, e passaria a ser, ao lado do Ministério Público, um investigador, um combatente do crime…
A história dos Direitos Fundamentais é a história da limitação do poder e essa lição tem de ser sempre relembrada. A humanidade levou séculos para conseguir a garantia do Juiz Natural, para conseguir ser julgada por um órgão que não estivesse subordinado ao Rei. Demoramos outros tantos séculos para se chegar à conclusão de que o Estado, enfim, não poderia se utilizar da tortura para obter qualquer tipo de confissão.
Não temos sequer a quantidade estimada de pessoas que perderam suas vidas antes de termos a distinção entre o órgão julgador e o órgão de acusação. E o que se vê durante a condução da operação? Um magistrado que deixa sua posição acima das partes para auxiliar o Ministério Público na prova da imputação da peça acusatória, um verdadeiro retrocesso.
Mas a sociedade tudo parece permitir, sob o fundamento de “combater o crime”. Agora imagine o amigo leitor que seu filho venha a ser repentinamente preso, numa festa. A acusação que passa a pesar contra ele é que faz parte de uma quadrilha internacional de tráfico de drogas. Para você, isso não faz sentido. Mas, em tese, havendo indícios de autoria e materialidade, o amigo leitor poderia ter seu filho, sabe-se lá por quanto tempo, preso para fins de “conveniência da instrução criminal”, para se obter sua confissão, em suma. Seria correto?
Admitir que a prisão preventiva se transforme num instrumento de obtenção de confissão é simplesmente renegar conquistas históricas de Direitos Fundamentais que demoramos séculos para conseguir. Na verdade, essa degeneração das prisões cautelares como meio para constranger o preso – o que não deixa de ser um modo de tortura – é apenas um retorno à Idade Média, quando era permitida a prisão, a tortura, a consequente confissão e o julgamento com base na confissão obtida mediante tortura.
Prisão preventiva não se destina à produção de provas e não há qualquer fundamento, nem mesmo o dito combate à criminalidade, que deva permitir tamanho retrocesso em termos de Direitos Fundamentais.
Carlos Eduardo Lula é Advogado, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MA, Secretário Adjunto da Casa Civil do Governo do Maranhão e Professor Universitário. e-mail:[email protected] . Escreve às terças para o Blog do Clodoaldo Corrêa