Por Luciano Martins, do Observatório da Imprensa
A imprensa brasileira escavou o poço da dignidade no último fim de semana, em sua derradeira e desesperada tentativa de reverter a direção dos votos para a Presidência da República. Como na tradição recente, coube à revista Veja dar partida ao factoide que deveria interromper a tendência dos indecisos em favor da candidatura do Partido dos Trabalhadores. Não foi suficiente. Ainda que por margem estreita, Dilma Rousseff se reelegeu.
Na segunda-feira (27/10), em processo de digestão do resultado indesejado, os principais jornais de circulação nacional assumem o discurso da conciliação proposto pela candidata vitoriosa e por seu oponente. A mais disputada eleição presidencial do presente século se encerra sob o signo da reforma política, tema que dominou a manifestação de Dilma Rousseff e que ganha algumas manchetes. Mas a proposta vem acompanhada de uma dúvida razoável: o Congresso Nacional abriria mão de decidir as novas regras em favor de um plebiscito, como propõe a presidente?
A profusão de análises que a imprensa oferece desde o começo da noite de domingo (26) dá ao leitor a sensação de que havia uma enorme riqueza de reflexões escondida por baixo do noticiário e das opiniões publicadas ao longo da campanha eleitoral.
O respeitoso perfil da presidente da República (ver aqui), apresentado na edição do Globo de segunda-feira, por exemplo, teria sido mais útil aos eleitores antes da votação. A reportagem, intitulada “Dilma Rousseff: a extraordinária história da clandestinidade à reeleição à Presidência”, teria estabelecido parâmetros mais claros para a comparação entre as duas candidaturas.
Essa e outras surpresas da segunda-feira, como as apreciações mais equilibradas sobre a situação econômica do país, mostram como a mídia desenhava uma visão catastrofista durante a campanha e agora oferece um cenário diferente, diante do fato consumado da vitória petista.
O rescaldo desse jornalismo oportunista e manipulador é a safra de ódio e preconceito que a sociedade colhe nas redes sociais, onde se manifestam os baixos instintos das classes médias tradicionais contra os que ascendem socialmente com a redução da pobreza, o preconceito do Sul contra o Norte e o Nordeste.
Sessão de descarrego
A imprensa que se apresentou no fim de semana, dando curso ao factoide fabricado pela revista Veja e estendendo a repercussão de boatos sobre o suposto envenenamento do doleiro que alimenta o escândalo da Petrobras, é muito diferente daquela que tenta interpretar sua própria derrota nas urnas. Ou alguém ainda duvida de que o resultado da votação contraria os desejos da mídia hegemônica?
Ao alimentar especulações, na fase final da disputa, a mídia ofereceu meios de racionalização para os insensatos que acreditam em qualquer coisa que venha a confirmar suas alucinações.
Não são poucos os cidadãos de alta renda e alta escolaridade que creem piamente que o avião em que morreu o ex-governador Eduardo Campos no dia 13 de agosto foi sabotado por petistas, que aceitam como fato qualquer declaração de um criminoso reincidente premido pela iminência de uma nova condenação, ou que acreditam que ele pode ter sido envenenado por ordem do governo federal, ou que as urnas eletrônicas são controladas por agentes comunistas por meio de telefones celulares.
A opção da imprensa por estimular o radicalismo, ao mesmo tempo em que seus editoriais condenavam hipocritamente as trocas de farpas entre os candidatos, é o fermento da insensatez que define muitos votos, que afeta o discernimento em ambos os lados do espectro ideológico em que se divide o país e estimula atitudes radicais como a dos militantes que picharam a sede da Editora Abril.
A origem desse estado de espírito avesso à convivência democrática é a linguagem virulenta dos pitbulls que foram alistados nas redações para substituir a narrativa jornalística pelo discurso da intolerância.
Os jornais amanhecem na segunda-feira (27) plenos de reflexões ponderadas, como se tivessem passado por uma dessas sessões de “descarrego” exibidos em programas religiosos na televisão. Como aquele sociólogo que virou presidente, é como se as redações estivessem pedindo: “Esqueçam o que nós escrevemos”. Mas a natureza da imprensa brasileira é aquela que dominou as 48 horas anteriores à abertura das urnas: é o vício da manipulação.