Michel de Montaigne (1533-1592) é considerado o inventor do gênero ensaio. A certa altura da vida, retirou-se para ler, meditar e escrever sobre praticamente tudo. Daí a origem dos seus “Ensaios”. Em um deles, chamado “Dos prognósticos”, utiliza-se de Horácio para combater aqueles que buscam prever o futuro, dizendo que “um deus prudente oculta-nos com uma noite espessa os acontecimentos do futuro e ri do mortal que leva suas inquietações mais longe do que deve”.
Falava isso para criticar aqueles que propunham adivinhações através dos astros, especulando sobre coisas futuras, modalidade que sendo exercida com afinco por nossos analistas da cena política local e nacional. Atirando o dia inteiro, como não acertar no alvo de vez em quando, indaga Montaigne usando as palavras de Cícero.
Mas se é necessário fazer algum tipo de análise – nunca um exercício de futurologia – sobre o período que se avizinha no Congresso Nacional, este tem de partir de um pressuposto claro: quem deu um novo mandato ao PT não foi a esquerda, mas o centro. A derrubada do Decreto sobre os Conselhos Populares foi um recado claro que o Governo não conseguirá andar sem a opinião pública e o Congresso.
Assim, a agenda da reforma política, e ela é necessária, só conseguirá avançar se o governo se afastar, por mais dolorido que seja, do endosso à tese de que a legitimidade política é somente aquela das ruas e movimentos sociais. Ainda que seja indispensável a participação popular no debate da reforma, o Congresso já deixou claro que não permitirá um avanço “pela esquerda”, até porque a esquerda não ganhou essas eleições.
O que será possível é, a partir desse cenário, traçar objetivos e possíveis avanços, negociados com o Congresso que se elegeu, por mais desanimador que ele seja. Isso porque se vende a ideia de que ela seria uma solução para o país: ao tempo em que diminuiria o atual nível de corrupção, melhoraria a qualidade de nossos representantes.
Há, todavia, uma relação inversamente proporcional entre o tamanho da agenda da reforma e a magnitude dos debates sobre ela. Fechadas as câmeras, tem-se apenas a solidão dos Congressistas que não conseguem obter consenso entre si.
O primeiro passo para a construção de alguma reforma em nosso sistema político talvez seja reconhecer que a tal “reforma política” não acabará ou mesmo diminuirá de maneira significativa comportamentos desviantes ou a má utilização dos recursos públicos. O que ela pode fazer é aperfeiçoar o modo pelo qual o voto dos eleitores são traduzidos em distribuição de poder político. E, a partir daí, procurar soluções que traduzam maior aproximação entre representantes e representados.
A imagem que me transparece de mais essa tentativa de reformar o sistema é a mesma que se tem em todo carnaval: o gari, o sorriso, a frenética dança e as lentes da câmera a marcar aquele momento. Corta-se a imagem, passa-se aos comentários sobre a modelo na escola de samba, e o que fica é só um gari, desencantado e solitário, com suas contas no final do mês.
A imagem do gari retrata o que o Congresso Nacional – e o próprio Brasil – não se cansa de fazer: a construção de sua própria imagem para iludir a realidade que bate à sua porta. Às câmeras, os sorrisos. Apagada a lente, a solidão.
Mais uma vez Montaigne: é um problema de auto-estima e de auto-respeito. A estima pressupõe o olhar dos outros sobre nós. O respeito pressupõe o olhar de nós sobre nós próprios. A auto-estima seria a opinião do outro, ao passo que o auto-respeito é nossa própria opinião. Só com auto-respeito se pode aceitar ser o que é sem ter de ser o que os outros esperam que sejamos. O Congresso vive esse dilema, como se pudesse apagar a realidade enquanto as câmeras ali estiverem. É pura auto-estima. Falta-lhe auto-respeito.
Vender a reforma como solução para fenômenos de natureza criminal é o mesmo que acreditar que o sorriso do gari na Marquês de Sapucaí é a consubstanciação da felicidade, quando não há nada mais triste que aquela alegria. A classe política vive da construção de sua imagem, mas nunca pode perder de vista seu auto-respeito. Sem ele, essa reforma não chegará a lugar algum. E isso é apenas um triste prognóstico, sem qualquer tipo de adivinhação.
Carlos Eduardo Lula é Consultor Geral Legislativo da Assembleia do Maranhão, Advogado, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MA e Professor Universitário. e-mail:[email protected] . Escreve semanalmente para o Blog do Clodoaldo Corrêa.